Cooperativas de Trabalho no SUS

As cooperativas vêm se tornando uma modalidade cada vez mais expressiva para a organização dos trabalhadores e para a prestação de serviços terceirizados no âmbito do SUS. Entre os profissionais médicos as cooperativas já representavam, desde a década de 60, uma importante opção de inserção no mercado de trabalho em saúde de um modo geral. A maior das organizações de cooperativa de médicos, a UNIMED, fundada em 1967, reúne atualmente nada menos que 90 mil cooperados e atende a um universo de 11 milhões de usuários. Como é caso da UNIMED, as cooperativas médicas atuam com frequência como prestadores de serviços vinculados à prestação de serviços em determinados planos de saúde. Outros profissionais liberais da área de saúde, tais como os dentistas, seguiram o exemplo dos médicos e também encetaram a organização de cooperativas.

No SUS, o surgimento de cooperativas de profissionais de saúde constitui fenômeno próprio da segunda metade dos anos 90 e tem particularidades muito especiais, quais sejam: a) as cooperativas não se limitam a congregar os profissionais liberais clássicos, podendo envolver outras categorias em composições heterogêneas (como no caso do PSF) e trabalhadores semiprofissionais (tais como os agentes comunitários de saúde); b) são contratadas pelos gestores do SUS, numa relação de terceirização, para prestar serviços em hospitais e na rede básica, podendo ou não participar da “gestão” local da assistência em determinada área.

Há, nesse sentido, dois tipos de cooperativas no SUS: as que são apenas fornecedoras de trabalho na prestação de serviços de saúde; e as cooperativas que são “gerenciadoras”, ou seja, que não só fornecem força de trabalho mas assumem a gestão de uma ou mais unidade de saúde da rede. As cooperativas gerenciais, cujo exemplo melhor conhecido é o PAS em São Paulo, têm sido objeto de inúmeras polêmicas no passado recente, na medida em que a adoção deste modelo implica em que influenciam diretamente a gestão do sistema. Portanto, as cooperativas gerenciais são agentes terceirizados que tanto realizam a prestação de serviços de saúde como a gerência de algumas unidades de saúde. Segundo alguns críticos, ao admitir esse modelo os gestores abrem mão da “governança” sobre determinada área do sistema local e se tornam vulneráveis a fortes grupos de interesses mercantis e corporativos que passam a atuar dentro das unidades assistenciais do SUS. Nesta nota, estaremos limitados à discussão da questão das cooperativas que são tipicamente “de trabalho”.

O que caracteriza o laço da relação cooperativada é a ausência da busca de lucro numa entidade que reúne agentes econômicos num empreendimento econômico comum, mas postos em condição de autonomia e de igualdade. Qualquer rendimento extra ou perda por parte da cooperativa toca a cada uma das partes associadas e não a um indivíduo ou grupo em particular. O sistema de relações de trabalho em cooperativa no Brasil é regulado pela Lei 5.764 de 1971, que preceitua o seguinte em seu Artigo Terceiro: “celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro”. A Lei 8.949 de 1994 incluiu na CLT a explicitação de que, qualquer que seja o ramo de atividade da cooperativa, não há relação empregatícia entre os membros associados ou com quem compra seus bens e serviços. Contudo, na chamada Lei do Cooperativismo, acima mencionada, está prevista a possibilidade de uma cooperativa contratar assalariados, os quais, evidentemente, não participam na qualidade de membros associados.

Como foi dito, a CLT buscou tornar mais explícito o fato de que a relação entre uma empresa contratante e os membros de uma cooperativa contratada está a salvo das injunções de uma relação de trabalho assalariada. Ainda nesta situação, de uma venda mais ou menos direta de serviços à empresa terceirizada, cada membro da cooperativa continua a ser um trabalhador autônomo. Como tal é definida sua eventual inserção no sistema de previdência social (INSS) e o imposto que deve pagar como prestador de serviços (ISS). Portanto, em princípio, não cabem aos membros da cooperativa terceirizada os direitos de assalariado que, noutras circunstâncias, seriam admitidos se reivindicados junto à justiça trabalhista.

Essa ressalva da CLT levanta uma questão delicada, que é hoje o calcanhar de Aquiles das cooperativas de trabalho. Trata-se de poder distinguir claramente a diferença entre um trabalhador cooperado legítimo e um trabalhador informal, um assalariado potencial, disfarçado em cooperado. No caso das cooperativas de pequenos produtores rurais, que comumente acabam subordinados de forma muito direta a certas agroindústrias, criando uma relação de comando do processo de trabalho por estas últimas, fica claro que ainda assim os membros cooperados mantêm-se como autônomos, porque continuam sendo proprietários de seus meios de produção (terra, boi, granja, etc.). Também no caso de cooperativas de médicos, a situação de autonomia é clara porque estes dispõe de seus próprios consultórios, equipamentos, etc. ainda que trabalhem para planos de saúde. Mas quando os trabalhadores da cooperativa são, por exemplo, os profissionais do PSF, que entram no processo produtivo em instituições públicas contando apenas com sua força de trabalho, surge a acusação de que se trata de cooperativas meramente “de fachada”. Como acontece em outros campos de atividade, as cooperativas no SUS são muitas vezes consideradas como uma forma de o gestor público escamotear aquilo que é uma relação de trabalho assalariada típica. O Ministério Público do Trabalho tem com frequência atuado junto à gestão do SUS questionando a legalidade da relação terceirizada que vem sendo mantida com cooperativas de trabalhadores de saúde, no que se põe como defensor dos direitos dos trabalhadores.

No entanto, no contexto social atual, em que a informalidade das relações de trabalho foi profusamente disseminada, resta saber até onde assim é justificável essa forma de cooperativa de trabalhadores “informalizados”. Isto porque a instituição das cooperativas acaba por servir para proteger econômica e politicamente os trabalhadores. É que representam uma das poucas alternativas à situação de desemprego puro e simples. Por outro lado, facilitam a ação coletiva de barganha dos trabalhadores. Nesta perspectiva, as cooperativas podem ser uma organização transitória dos trabalhadores que rumam para situações em que possam de fato fazer valer seus direitos, eventualmente, na condição de assalariados formais.

Ademais, em casos como o do Programa de Saúde da Família (PSF), as cooperativas vêm se impondo com muita frequência como alternativa para responder à necessidade de criar um incentivo efetivo à dedicação integral de médicos e enfermeiros. Possibilitam que os níveis de remuneração sejam estabelecidos num patamar que alcança de 2 a 3 vezes o que é pago para os mesmos profissionais que trabalham nos serviços usuais, em ambulatórios e hospitais, para uma mesma carga horária. Para o médico a situação de autonomia, que é imposta pelo regime das cooperativas, é não só muito familiar como também fortemente aspirada, dado seu ideário de profissional liberal. Recentemente muitas outras categorias vieram a fazer opção semelhante, escolhendo o que se pode denominar de “autonomia com remuneração diferenciada”. Ou seja, preferem uma situação de remuneração imediata mais elevada, no lugar das clássicas garantias da função pública, que, por outro lado, vêm perdendo seus atrativos. Como se sabe, a estabilidade deixou recentemente de figurar entre essas garantias e, ademais, as vantagens do sistema público de aposentadoria parecem cada vez menos marcantes em comparação com o regime previdenciário geral. Assim, ao aderirem ao sistema das cooperativas, pode-se dizer que esses trabalhadores se antecipam, defensivamente, ao efeito das atuais políticas governamentais que tendem a fazer aproximar a condição do funcionário público à de qualquer outro empregado.

No entanto, o regime de cooperativa vem alcançando também certos trabalhadores “genéricos”, para os quais são adotados níveis de remuneração mais baixos do que os praticados na administração pública, como é o caso dos agentes comunitários de saúde (ACS). Estima-se que dos cerca de 150 mil ACS em atividade no País, que, em geral, percebem o equivalente a um salário mínimo, 80% estejam em condição de autonomia “forçada”, quer porque fazem parte de cooperativas (específicas ou em conjunto com outras categorias do PSF), quer porque são pagos através de mecanismos informais tais como as chamadas “bolsas de trabalho”. Desprotegidos do ponto de vista da legislação trabalhista ou sendo obrigados a contribuir à Previdência Social na condição de autônomos, os ACS enfrentam uma inserção no SUS que tem sido apontada como injusta. Por outro lado, se não é consensual, é predominante no setor a recomendação de que o ACS não seja convertido em mais um funcionário público, sob pena de perder sua vantagem comparativa de ser uma “ponte entre a comunidade e os serviços de saúde”. Uma solução que tem sido aventada frequentemente é a sua contratação como celetistas por ONGs comunitárias, mediante convênios celebrados com as secretarias de saúde. No entanto, essa alternativa parece pouco viável na maioria dos municípios brasileiros, onde o grau de desenvolvimento econômico social e de participação da cidadania ainda não geram uma cultura institucional própria ao Terceiro Setor.

Há muitas razões que favorecem atualmente a disseminação do regime das cooperativas de trabalho no SUS:

a. na cooperativa, a vinculação de pessoal é feita de forma bastante flexível, através de um contrato global e, provavelmente, a custos mais reduzidos do que se o gestor tivesse que arcar com todos os encargos trabalhistas inerentes ao emprego público celetista e com os custos da função de administração de pessoal;

b. há uma aspiração, por parte de muitos profissionais, especialmente dos médicos, de manter uma condição de autonomia no mercado de trabalho, e a organização cooperativa satisfaz adequadamente a esse anseio;

c. a condição de funcionário público é hoje muito pouco valorizada aos olhos dos profissionais de saúde;

d. as tradicionais vantagens de remuneração diferenciada da aposentadoria no sistema de previdência pública foram anuladas e deverão doravante, na maioria dos casos, ser negadas aos que ingressarem nas novas carreiras dos empregados celetistas;

e. a cooperativa cria um vínculo coletivo de solidariedade entre os profissionais, que obriga o gestor local do SUS a ter disposição para negociar os valores dos contratos e outros elementos que fazem parte das condições de trabalho.

Como na maioria das situações, as cooperativas não têm à sua disposição clientes privados alternativos, mas se vêm obrigadas a vender seus serviços ao setor público, sua capacidade de barganha é limitada. Entendemos que há aqui certo equilíbrio de forças propício a que os gestores possam exercer uma adequada regulação dessas relações contratuais, estabelecendo, por exemplo, metas de desempenho, mecanismos de supervisão, critérios comuns de avaliação de qualidade dos serviços prestados, etc. Ou seja, o gestor goza de prerrogativas que lhe favorecem para estabelecer um razoável grau de controle sobre o serviço terceirizado via cooperativas de profissionais.

Um aspecto importante é o da regulamentação da contribuição previdenciária. Sem dúvida, cabe ao gestor exigir, nessa negociação, que todos os membros de uma dada cooperativa mantenham-se como contribuintes autônomos do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), de tal forma a garantir uma adequada cobertura desses trabalhadores por benefícios previdenciários. Isto é particularmente importante no caso dos agentes comunitários de saúde. Por outro lado, certas vantagens trabalhistas tais como férias e décimo terceiro salário podem ser informalmente assegurados, ou seja, a despeito de os indivíduos atuarem como autônomos e não como celetistas. As cooperativas acarretam, no entanto, o risco de uma fragmentação das diretrizes de gestão, na medida em que forçam o gestor a dar conta de uma multiplicidade de grupos de prestadores, com interesses diversos.]

 

Fonte: https://saude.mppr.mp.br/pagina-73.html

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